O rap norte-americano, por mais que pareça "sem limites", possui lá seus limites. Seus tabus. Sua cartilha. Quando ouvimos e traduzimos algumas letras dos principais expoentes, ficamos boquiabertos com algumas colocações extremamente violentas, gráficas ou absurdas. Um dos principais exemplos que posso citar é o da música "Dead Wrong", do Notorious B.I.G.
Lançada após sua morte, a música conta com a participação de Eminem, cuja carreira já estava proeminente na época. "Absolutamente Errado" seria a melhor tradução do título. Ambos, Biggie e Eminem, narram situações e práticas extremamente violentas, controversas e absurdas, ou seja, "absolutamente erradas", em primeira pessoa. Uma espécie de narrativa gráfica que nos remeteria a algum filme de terror de baixo orçamento que foca no "gore", ou seja, no "horror", nas imagens gráficas ou explícitas.
Bom, mas se eles andam nessa borda, flertam com o "sem limites", qual seria o limite dos rappers gringos? Qual a linha que a cultura norte-americana não permite ou não aceita que um rapper cruze? A principal, pelo que me consta nesses anos todos de apreciação e pesquisa do gênero, é a racial. Por lá não há a menor dúvida de que o rap é preto. Rappers de outras etnias são minoria, exceção, e enfrentam alguma resistência. Posso citar o improvisador e MC de batalha Jin Tha Emcee, por exemplo. De ascendência chinesa. Teve muita dificuldade em se destacar na cena, principalmente por motivos raciais.
Não que seja impossível um MC de outra etnia ter uma carreira no rap - Beastie Boys, o Everlast (do grupo House of Pain) conseguiram sucesso. Vanilla Ice teve um sucesso meteórico e efêmero. E, logicamente, o próprio Eminem. No entanto - o "tema" que eles não tocam, e se tocarem estarão com suas carreiras em cheque - é o racial. Comentários raciais ou preconceituosos contra pretos. Ou ainda termos raciais usados apenas entre os próprios pretos. Essa cláusula da cartilha jamais é deixada de lado por qualquer rapper de outra etnia, pois correm o risco de ter seu "ghetto card" removido.
Curiosamente, é permitido nessa cartilha que pretos discriminem à vontade quem eles quiserem. Ofensas raciais pesadas contra brancos são livremente proferidas por grupos como "X-Clan", cuja abordagem afrocentrada foi o ponto alto de sua carreira. Ice Cube, numa fase inicial de sua carreira solo e profundamente influenciado pela Nação do Islã, proferia em algumas rimas nítidas ofensas raciais contra judeus, ecoando posicionamentos polêmicos do Ministro Louis Farrakhan concernentes ao que ele acredita tratar-se da "ameaça sionista". Há quem diga que tal ameaça é real, há quem diga que trata-se de mais uma teoria da conspiração. Vou deixar isso ao critério do leitor.
Outra questão sensível da cartilha do rap norte americano é a da sexualidade. Pelo fato da cartilha ser machista e homofóbica, você não verá rappers de nenhuma das vertentes exaltando a homossexualidade ou narrando um relacionamento homoafetivo. Há uma lógica retrógrada que liga orientação sexual à honra e a respeitabilidade. Se for homoafetivo é desonrado e tirado, automaticamente. Não serve pra empunhar o microfone. Termos degradantes contra mulheres são fartamente usados. Homens, inclusive, são também atacados com estes mesmos termos degradantes contra mulheres e costumam ficar extremamente ofendidos, mas mesmo assim os usam livremente nas rimas desde que sejam "contra os inimigos".
Em resumo, nessa cartilha do "pode quase tudo" não rola racismo, nem liberdade afetiva, nem respeito com às mulheres. Não posso, contudo, deixar de enfatizar que existem diferentes vertentes no rap de lá. A vertente visceral e explícita, que retrata a miséria e as diversas carências da vida nos centros urbanos, impregnada de crime, prostituição e drogas, é a "gangsta", que desde a ascensão do NWA "tomou de assalto" o mainstream, mesmo com os vários artistas subsequentes tendo seus respectivos hits regravados e levemente atenuados pra garantir que toquem no rádio.
A vertente "consciente" ou "underground", que tem como principais expoentes nomes como Public Enemy, KRS-One, Common, Brand Nubian, Lauryn Hill, Bahamadia, Dead Prez, Talib Kweli, Mos Def (Yasiin Bey), entre muitos outros, e na contemporaneidade podemos citar o próprio Kendrick Lamar, J. Cole, Rapsody ou Ill Camille, traz uma narrativa ainda mais polida, refinada e conscientizada, rompendo com as descrições supracitadas da "cartilha pode quase tudo" para um patamar mais elevado de padrão de pensamento e "conhecimento de si", no qual limites do que deve ou não ser dito são superados por um espírito de liberdade criativa emancipatório e transcendental.
A questão é - há espaço para todo tipo de rap? se nem mesmo no que há de mais visceral no rap norte-americano existe espaço para racismo, por que há espaço para machismo e misoginia? Se artistas que exaltam a cafetinagem e o tratamento degradante a mulheres (Too $hort e 2 Live Crew) coexistem com artistas que as tratam como rainhas e deusas (Dead Prez e Rakim), será que é apenas uma questão de vertente?
E no caso do rap nacional? Como fica?
Sempre mais consciente e contido no quesito visceralidade, aqui até mesmo os raps considerados "de bandido" possuem fortes elementos de crítica social porém o espaço feminino sempre foi conquistado com muita dificuldade. Hoje em dia, após uma geração de verdadeiras guerreiras pavimentarem o caminho, a desigualdade deu uma recuada.
Porém, o elemento visceral de raps sem nenhuma consciência também se adentrou em nossa cultura, aliando a estética da atual cena pop do "mainstream" norte americano - altamente influenciada pelo trap, com mansões, carrões, jóias, bebidas e mulheres seminuas rebolando - com o funk carioca.
E agora? Tal gênero brasileiro (trapfunk) com toda sua bandidagem e misoginia deve ser perseguido e tolhido da existência ou deve ser aceito como vertente? (Rap adulto/proibidão/pornô)?? Cada vertente tem sua cartilha específica? Cartilha sempre existiu... como fica essa?